Quando desembarco em Lisboa tenho sempre a sensação de uma apatia que mergulha a cidade nessa melancolia que alguns cantam e que é sintoma das doenças da capital. Desembarcar na Portela num domingo e fazer uma viagem de táxi por Lisboa, a ouvir um relato de futebol aos berros, é uma experiência terminal. Em alto contraste com a chegada a uma capital europeia. A terra de ninguém das Avenidas Novas, o inconcebível monumento a Sá Carneiro no Areeiro, os caixotes vidrados da Avenida da República e da Fontes Pereira de Melo, as árvores sombrias do Campo Grande, o desapego ventoso do Parque Eduardo VII, as lojas fechadas da Avenida da Liberdade, a deserção da Praça dos Restauradores (mais feia do que nunca), o vazio e decrepitude das ruas da Baixa, levam-me a pensar o que terá acontecido durante todos estes anos para Lisboa ter chegado a este estado vil.
Com excepção do Chiado e do Bairro Alto, onde se ouve música e se vêem jovens e não velhos com ar abatido, e da LX Factory (condenada a prazo) toda a Lisboa é uma neura, a neura de que falava Cesário Verde. Quem conhece outras cidades sabe que a cidade é o lugar onde se vê o futuro. Vê-se o que vai acontecer. Em Lisboa vê-se o passado. Em certos domingos, a Lisboa de certos bairros é a Lisboa do tempo de Salazar, a Lisboa das fotografias a preto-e-branco do Estado Novo. A Lisboa da Morais Soares e da Almirante Reis, de Arroios e do Campo Santana, do Conde Redondo e da Duque de Loulé, da Mouraria e dos Anjos, de Alcântara e do Rato (seria possível fazer pior do que o Rato?), da Estrela e da Lapa.
Uma Lisboa silenciosa e posta em sossego, com ruas esburacadas e mal calcetadas, carros estacionados em todos os espaços, velhas que espiam nas janelas, homens que cospem para o chão quando passa a carrinha funerária. E cheiro a chichi de gato, como dizia o Solnado. Com excepção do Chiado, que teve um princípio de esforço de "colonização", e do esforço inacabado do Bairro Alto (graças à visão, entre outros, do empresário Manuel Reis), e do bairro de Campo de Ourique ou das ruas adjacentes à Avenida de Roma, tudo o resto mudou pouco em 35 anos. A Expo melhorou a zona mas não é mais do que um subúrbio de luxo. Os condomínios privados espalharam-se e os centros comerciais também, matando a vida das ruas, eliminando os cinemas, eliminando os cartazes e os néons. Eliminando a vida. Sobram bancos, que matam as fachadas, e medonhos edifícios públicos e escritórios.
A oferta cultural é infinitamente maior e apesar disso a Baixa é um deserto e o Terreiro do Paço uma área de desastre. A Lisboa à beira-Tejo está tomada por monstruosidades e pelo porto, e o metro, esse modo simples e rápido de deixar o carro à porta, anuncia com estalo que irá até às Amoreiras. Daqui a uns anos. Como se fosse uma grande novidade. Os moradores de Lisboa têm mais dificuldade em deslocar-se dentro de Lisboa do que os da Pontinha.
Várias cidades, de Istambul a Edimburgo ou Sevilha, de Dublin a Berlim e Praga, apostaram nos eléctricos rápidos como meio de circulação. A preocupação 'verde' reina. E os novos empreendedores conseguem 'furar' e abrir pequenas lojas e bares, cafés e galerias, cabeleireiros e restaurantes que atraem os jovens, enfeitam as ruas e as alegram.
Lisboa, fora do centro histórico e do parque temático para turistas, não passa de um desolado subúrbio.
Em vez de mais planos megalómanos e estratégias o que Lisboa precisa é de micromanagement. Serviços decentes, transportes 'verdes', proibição de mais centros comerciais e condomínios privados, atracção da população jovem, recolha e reciclagem do lixo, plantação de árvores, incentivos aos novos empresários e comerciantes, regulação do mercado da habitação e escritórios, arquitectura integrada, responsabilidade dos moradores e proprietários no governo dos bairros. Substituir os carros de vez. Será assim tão complicado?
Clara Ferreira Alves
in EXPRESSO, 14 de Setembro de 2009
Fotos: Rua da Madalena e Rua da Padaria
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